A cidade se trancafia dentro de si mesma. O externo e o interno são manifestações tão antônimas que chegam a se confundir no limiar das tensões, tomando cada uma o papel da outra no dia-a-dia urbano. A liberdade não mais tem a ver com o ir e vir, com a procura do inesperado, com o conhecer e o fazer-se conhecido. A liberdade agora é fruto da prisão. As pessoas nas cidades prendem-se, trancam-se em busca da liberdade, da fuga do medo, para poderem estar de forma calma e tranquila consigo mesmas. É a busca da capela-útero de João Cabral. As portas não são mais de abrir, mas de fechar. Elas fecham para o aberto. E assim, fechando-se em torno de si mesmas, em suas casas, seus terrenos, propriedades, a cidade vai se esmaecendo de vida. As células do tecido orgânico vão se isolando e perdendo suas relações. O organismo vai perdendo vida. Mas o que acarreta isso? Será apenas o medo da violência? Os muros altos, as cercas elétricas! Existirá coisa mais aterradora do que isolar-se atrás de um conjunto de fios elétricos por medo de outros seres-humanos? E que seres-humanos são esses que irão debater-se contra essa fiação? Que monstro alimentador dessa desfiguração urbana está tramando contra nosso futuro? A própria cidade, num ciclo vicioso, trama contra si mesma. Ela é uma péssima anfitriã. As ruas das grandes cidades são pouquíssimo hospitaleiras. Não há beleza, gentileza, delicadeza em nossas ruas. Olhem para os postes de iluminação pública! Eles trazem em si a mágica da luz! A luz que rasga o breu da noite e disponibiliza a possibilidade da alegria e da convivência mesmo sem a luz do sol. Como cantaram Chico Anísyo e Arnoud Rodrigues (que Deus o tenha!), numa música que para mim é belíssima que diz: “Nosso poste da esquina, da rua Jorge Lima, onde a turma se formou, onde a turma se encontrou e a vida separou!”. Mas olhem para os postes de iluminação pública! São monstros de concreto! Onde está a delicadeza de quem carrega a luz? Fortaleza já foi possuidora dos postes mais charmosos do Brasil, nos tempos da luz à gás! As calçadas? Como falar das calçadas se elas nem sequer existem? O que o trânsito faz com as pessoas é assustador. Educados perdem a educação, gentis tornam-se ranzinzas. O stress do trânsito é de fazer qualquer um precisar sair da rua. A casa acalma. Tranquiliza. Esvazia-se a cabeça dos tantos barulhos desnecessários de lá de fora. A paz chega quando se está só, em silêncio, trancado. Os ruídos do mundo externo são tão altos, tão improdutivos, tão alucinantes que nos calam. E não são apenas ruídos sonoros. A briga entre as placas de propagandas, as luzes das lojas, os sinais de trânsito, os edifícios modernos, os fios de eletricidade são tão aterradoras quanto os freios dos ônibus, a buzina do motorista enfadado, o som do carro do rapaz playboy... E tudo isso nos cala. Chegamos em casa sem histórias para contar. Até porque o tempo não permite. Não temos tempo de olhar o que acontece na rua. 60km/h é muito devagar para a nossa pressa, mas sem dúvida é demasiado rápido para se viver o momento. Aquele pobrezinho doente, sem pernas que pede esmola na rua? Aquela criança magrela, com um bucho enorme e duro? Não merecem atenção, são vagabundos, espertalhões, que querem ganhar dinheiro fácil. E tudo isso passa numa velocidade tão grande que a gente nem nota. Temos segundos de revolta, de ética, de humanidade mas que passam voando por nossa cabeça, pois não temos tempo para maiores reflexões. E mesmo as reflexões por vezes param em certo momento e a luta contra as injustiças, as diferenças, o machismo, o preconceito tornam-se mais injustas, mais diferenciadoras, machistas, preconceituosas e massacrantes.
O que fazer diante disto? Não sei. Sei que viver em uma saudade, em uma melancolia por um tempo que eu nem cheguei a viver não adianta. Não sou do interior. Meus pais são. Sei de muita gente que ainda tem o costume de sentar na calçada no fim do dia. Colocar suas cadeiras de balanço lá fora e ir ver o movimento. De vez em quando passa um carro. O carro. Esse que veio diminuir as distâncias parece que só as aumenta. Tantas e tantas vezes é tão mais complicado ir daqui pra lá de carro. E demorado. E estressante. Passam-se horas em um congestionamento. Sem falar na dor no joelho esquerdo que pisa na embreagem e nas costas doídas com tanta tensão.
As casas mais antigas, do Centro, possuem algo interessante que as casas e os condomínios atuais não possuem, que é a porta e a janela que dão para a rua. Ou seja, a falta do muro. A relação interior x exterior era bem mais interessante quando se podia abrir a janela e apreciar a rua. Não apenas apreciar a rua, mas oferecer um bom dia a quem passa. Como no poema de Cecília Meireles, As meninas:
Arabela
abria a janela.
Carolina
abria a cortina.
E Maria
olhava e sorria:
“Bom dia!”
Arabela
foi sempre a mais bela.
Carolina
a mais sábia menina.
E Maria
apenas sorria:
“Bom dia!”
Pensaremos em cada menina
que vivia naquela janela;
uma que se chamava Arabela,
outra que se chamou Carolina.
Mas a nossa profunda saudade
é Maria, Maria, Maria,
que dizia com voz de amizade:
“Bom dia!”
Que beleza! “Cada menina que vivia naquela janela”! A janela são os olhos da casa. E o que podemos ver se entre a janela e a rua tem um muro? Onde fica o bom-dia? Aquela menina bonita debruçada no peitoril!? E que belo nome! Peitoril! Tudo faz mais sentido quando se humaniza o cotidiano, quando o ser-humano é o padrão da vida, e não a máquina, o carro.
E se por um certo momento abríssemos as janelas que exalam a paz do interior para o mundo exterior? Trouxéssemos a gentileza que há por dentro para fora, para a rua? E se esse movimento fosse do mundo sufocante e fechado aberto de fora, para o mundo aberto de paz e tranquilo fechado de dentro? Se puséssemos janelas cheias de bons-dias nos muros dos condomínios e se nos debruçássemos sobre elas? Haveria alguma compreensão? E, como cantou Chico Buarque, o mundo amanheceria em paz?