segunda-feira, 30 de agosto de 2010

Pequenas histórias para um almoço de domingo...

Tinha-se em minha casa um ótimo costume que perdurou durante certo tempo de minha infância: almoços dominicais em família, costume esse que se prolongou por cerca de 10 anos. Vinham alguns tios e tias e, principalmente, meu avós maternos, Meton e Roselita.
O cardápio normalmente se repetia, porém, de tão bom, nunca ninguém enjoava. Mamãe preparava um fantástico baião-de-dois, sempre bem molhadinho e com vários pedaços de queijo de coalho. Papai encarregava-se do churrasco: picanha, costela de carneiro, lingüiças... Para mamãe, churrasco era o prato ideal, pois é um prato que “não dá trabalho!”, afinal, não era ela quem o preparava!...
Desse modo, os domingos em minha casa eram felizes, pelo menos para a criança que eu era. Revia meus primos e jogava futebol no jardim o dia inteiro. Fazia uma pausa rápida ali pelo meio dia, na hora do almoço e assim que terminava de engoli-lo voltava para a bola. Minhas irmãs mais velhas, coitadas, lavavam os pratos sujos. Ficavam na pia lavando e cantando músicas sertanejas. Quem sabe muitas duplas não começaram assim? Sabiam que se não fossem rápido para a pia, logo que terminado o almoço, mamãe iria lá e lavava tudo sozinha e ninguém queria lhe dar mais esse trabalho.
Meu tio reclamava da demora de sair o cafezinho chamando a família para ir tomar café no mercado perto de minha casa. Papai arrumava uma desculpa para ir dormir depois do almoço, dizendo que esquecera a televisão ligada no quarto e que tinha que ir desligá-la. Todos os domingos a desculpa era a mesma! E por falar em televisão, havia corrida pela manhã com o Senna. Papai adorava ver a largada!
Esses almoços duraram até quando meu avô adoeceu e teve que ir ao hospital. Logo depois que ele morreu, os almoços acabaram-se. Ele era a figura mais calada e quieta nos almoços, mas sua presença era como a de um velho cacique: todos o respeitavam e veneravam como que a uma personificação da sabedoria e da experiência. Ele comia muito bem. Seu prato preferido era o prato cheio! Além de todo o ritual que tinha com a comida: Era o primeiro a sentar-se na mesa e o último a sair. As pessoas hoje em dia deveriam aprender a comer como ele. Começava pondo o feijão no prato e o machucava todo com o garfo até desmanchar-se completamente. A partir daí ia acrescentando o arroz, a farofa, a carne e, devagar e minuciosamente, ia misturando tudo até criar uma bela montanha de comida no prato! Cada garfada rendia 70 mastigadas antes de ser engolida! E assim durava seu almoço, bem apreciado e bem digerido. Depois de encerrado o ritual de ingerir o alimento, iniciava o da sua digestão. Caminhava várias vezes até o portão e voltava. Desse modo conseguiu ficar velhinho com uma ótima saúde.


Porém o mais interessante e talvez o momento mais aguardado do almoço eram os textos que vovô levava. Todo domingo escolhia um texto de algum livro de sua biblioteca, copiava-o à mão em qualquer papel que via à sua frente, folhetos de propaganda, cartão de bingo de televisão, pôster do Flamengo campeão que saiu no jornal, tabela da copa e por aí vai. Sua letra era fantástica. Foi durante muito tempo professor de desenho e sua letra escrita eram verdadeiros desenhos. Tenho um projeto em mente de transformar sua letra em fonte de computador e depois digitar esses textos, quem sabe depois transformar tudo isso em um livro... será o "Pequenas histórias para um almoço de domingo". Aqui transcrevo talvez um dos poemetos, junto com sua contextualização bibliográfica preferidos de meu avó, que sempre que havia oportunidade, ele o recitava para todos, chama-se Dodora:





"Conforme carta de informação que me faz o Dr. Mário Gurjão Pessoa, (ao tempo quasi meu vizinho - Rua Conselheiro Tristão - 398) - a pequena poesia acima é de autoria do Dr. Augusto Linhares, médico, escritor e poeta, filho de Baturité, nascido a 24 de Novembro de 1897, formado pela Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro, em 1912. Fez estudos de Medicina Tropical, em Manguinhos, com Osvaldo Cruz, e foi aluno, em Liverpool, de Ronald Ross e trabalhou em Berlim, na "Charité", com o professor Killiam, tendo trabalhado em Bordeus - (França) e nos E.U.A.


O poemeto diz assim:


Quando Dodora, ao céu chegar,
(é minha crença!)
E ao chaveiro disser:
"- Dá licença, meu Santo?"
São Pedro, vendo-a, lhe dirá, com certo espanto:
- Você, Dodora? Não precisa de licença!...
E a porta, lhe abrirá paternalmente.
E ela, para de todo ser feliz numa tal hora,
Seu cachimbinho acende.
Acende numa estrela.
Mas São Pedro lhe diz:
"- Não! Aqui não, Dodora!"




OBS.: Como se vê, a velhota gostava de cachimbar, e até no céu, não largava o vício...


10.07.94"





Um comentário:

Unknown disse...

emgracado ler esse texto, que tanto me faz voltar a infancia... coincidencia, mas hj de manha quase quebrei o braco esquerdo, levando um tombo de bicicleta - como costumava acontecer naquelas epocas dos almocos de domingo!

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